* José Renato Nalini
Somos pródigos em retórica e em proclamações edificantes. Cáusticos nas críticas ao capitalismo apátrida e sem alma, nos perfilhamos à patrulha que combate preconceito e discriminação. Lamentamos que o Brasil tenha sido um dos últimos países a abolir a escravidão. Falamos com autoridade sobre inclusão e as palavras da moda, nesse ano de pandemia, foram solidariedade, fraternidade, compaixão e conversão.
Entretanto – sempre há um entretanto – convivemos resignadamente com os moradores de rua. No discurso, louvamos a Constituição Cidadã, que erigiu a dignidade a supraprincípio norteador de todas as atividades em solo brasileiro. Mas permitimos, somos coniventes ou cúmplices, da situação que leva seres humanos a ocuparem todo espaço público disponível. Ou não somos?
Há quem sustente que “viver na rua” é um direito. Outros argumentam que os sem teto em São Paulo são em número reduzido, muito menor do que o similar em Nova Iorque ou Los Angeles.
Não penso assim. A dignidade é um conceito complexo e abrangente. Moradia tem de necessariamente estar sob essa abrangência. Como enxergar atendimento ao postulado da dignidade para uma existência que não dispõe de privacidade, também não tem banheiro, não tem lugar para sua higiene, não tem uma mesa e cadeira para tomar uma refeição. Que, por sinal, também não existe.
Os moradores de rua têm uma condição de certa forma inferior à do escravo. Se é verdade que não são forçados a trabalhar, a visão do que significa trabalho foi se alterando com o decorrer da História. Já não é o castigo de quem tem de tirar o sustento da terra, nela empregando o suor de seu rosto. Quando se faz aquilo que se gosta e que dá prazer, trabalhar é uma alegria. Alegria da qual milhões de brasileiros também não fruem, pois o desemprego superou escalas as mais pessimistas. Quantos são os nossos irmãos que se sujeitariam a situações desconfortáveis, mas que representassem ganho suficiente para sobreviver?
O escravo ao menos dispunha de alimentação e tinha um teto. O morador de rua não tem comida, nem senzala.
Será que não somos hipócritas, ao aderir a certas cruzadas, sem nada fazer para corrigir situações de injustiça?
*José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.