Patrimônio Histórico-cultural: para a sua salvaguarda não bastam amor, militância, boas intenções e indignação

blog do nelson lisboa Salto
Imóvel localizado entre o prédio e a casa da esquina, na Avenida Vicente Scivittaro (reprodução)

Por Marcos Pardim e Rafael Barbi

“O ano 2021 começou trazendo mais uma ação de dilapidação e destruição do já dilapidado e judiado patrimônio histórico e cultural de Salto.
A Vila da Barra, com seu conjunto arquitetônico, paisagístico e turístico, é das mais valiosas relíquias da nossa identidade cultural. Sua importância ultrapassa as nossas fronteiras. Sua história impacta e se mistura – política, econômica, simbólica e culturalmente – com a própria história do Brasil.
É parte fundamental do mosaico que ajuda a entender o processo de industrialização e em como isso colaborou para alterar o urbanismo, a arquitetura e a paisagem das cidades, sem contar em como serviu também para delinear aspectos sociais, identificando de maneira inequívoca uma classe trabalhadora, operária, a partir da moradia individual ou, no caso das vilas, coletiva.
Salto é um dos poucos municípios brasileiros a, ainda, manter resquícios deste recorte histórico em três monumentos patrimoniais destacáveis: o quadrilátero conhecido como Casas da Brasital (com um dos quatro quintalões ainda razoavelmente preservado); a Vila Operária da Fábrica de Papel e a citada, e motivo deste texto, Vila da Barra.
No primeiro final de semana do ano recém-iniciado, com autorização da Prefeitura, por intermédio de seus órgãos competentes (não raro, infelizmente, acrescidos do prefixo in), uma das construções da Vila da Barra foi deitada ao chão, demolida inapelavelmente.
O processo de apagamento do patrimônio saltense não é algo recente. Em 1985, a cidade estava às voltas com a iminente derrubada do Cine Verdi e, em seu lugar, ocorreria a construção de um prédio de apartamentos. Diversas ações foram idealizadas, tendo sido fundamental a participação da sociedade civil na luta pela preservação daquele espaço. O prédio não foi derrubado, serviu durante muitos anos como Teatro Municipal da cidade e, hoje, abriga um equipamento cultural multiuso de extrema importância.
Infelizmente, a história de sucesso de preservação, manutenção e uso cultural deste espaço não serviu de exemplo para que a cidade tomasse consciência da importância de seu rico patrimônio histórico e cultural na construção de sua identidade, zelo com seu IDH e sedimentação de seu futuro.
São muitas as nossas perdas. Talvez, com razoável probabilidade de que tenha mesmo simbologia de causa e efeito, fora a luta pelo Teatro Municipal Giuseppe Verdi, nenhum outro patrimônio material ou imaterial da cidade contou com a participação da sociedade civil de forma veemente na sua valorização e preservação.
Para minimizar esta fragilidade, a da não adesão da sociedade civil na luta pela salvaguarda de nossas relíquias patrimoniais – muitas vezes desencorajada pelo próprio poder público -, é preciso encontrar guarita na legislação, na construção de marcos legais protetivos, incentivando a participação de parte da sociedade, notadamente aquela cujas atuações cotidianas dialogam diretamente com a cultura, a arte, a arquitetura, o urbanismo, a história, o paisagismo e o turismo.
A CF, em seu artigo 24, dispõe sobre o papel do Poder Público na proteção dos patrimônios histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico. As casas da Vila da Barra se inserem em um dos itens do artigo: “conjunto urbano e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
Logo no início de 2020, antes de todo o caos sanitário em que nos encontramos, Salto foi agraciada com o título de “Capital da Cultura” do Estado de São Paulo. Obviamente, um título de suma importância para a cidade e que coaduna diretamente com a identidade propagada há décadas da potência cultural presente e brilhantemente representada por nossos artistas.
Porém, ao analisarmos mais profundamente as práticas e políticas públicas implementadas pela gestão municipal, e principalmente pela Secretaria de Cultura, há questionamentos necessários e pertinentes que devem ser feitos. O caso da demolição de uma parte do conjunto de casas da Vila da Barra é um grande exemplo disso.
Em 2014, após vários meses de discussão entre os diversos setores do Poder Público e da comunidade, foi criado o Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Cultural (COMDEPAC), um órgão de assessoria para a criação de políticas de salvaguarda e preservação do acervo cultural material e imaterial da cidade; órgão que há muito vinha sendo reivindicado por grupos e pesquisadores que se debruçaram por essa temática ao longo dos anos. Até 2016, o COMDEPAC atuou dentro da sua missão, através de ações tímidas, mas que deixaram um legado, sendo passível de citação a paralização dos processos de alteração arquitetônica promovidos pelo CEUNSP, a retomada das manutenções no seu conjunto de casas do entorno e a criação de elementos importantes para a conservação de algumas regiões fundamentais, como por exemplo, o processo de tombamento da Vila Operária da Fábrica de Papel, na saída da cidade.
Também foi aprovado, em 2016, o Plano Municipal de Cultura. Nele, de maneira enfática e explícita, está posto o caminho a se trilhar: inventário, registros, vigilância, tombamento, desapropriação, entre outras formas de acautelamentos e preservação.
Portanto, a cidade possui as ferramentas necessárias para cumprir com sua obrigação constitucional, conforme citado nesse texto, de garantir a preservação do seu patrimônio cultural, fruto direto das transformações do processo histórico e a construção das diversas identidades locais.
Em uma pesquisa mais atenta aos registros deixados pela antiga gestão em relação ao COMDEPAC, percebemos duas informações de extrema importância. A primeira, é que a única ação documentada do Conselho é a nomeação dos membros através do decreto nº 073 de 09 de abril de 2018, onde o Prefeito Geraldo Garcia nomeia todos os integrantes das 16 cadeiras do conselho e seus respectivos suplentes. A segunda, e talvez a que explica um atentado tão grave ao patrimônio local como o ocorrido no início deste ano, é que esse é o único registro ou menção ao conselho realizado pelo poder público.
Com esse quadro, podemos identificar de forma inequívoca que a missão constitucional, fortalecida com a existência de ferramentas legais para a realização da salvaguarda do patrimônio cultural local, foi relegada deliberadamente ao esquecimento pela gestão pública. Afinal, qualquer processo de demolição percorre toda uma série de secretarias municipais até chegar à autorização ou não do pedido original. Dessa forma, em tese, essa solicitação deveria ser reportada à Secretaria de Cultura que, dentro das suas atribuições, deveria convocar o Conselho para averiguar e se pronunciar pelo veto da autorização de demolição.
Agora, se essa matéria passou pelo Conselho, temos uma situação muito mais grave do que um simples “esquecimento” da gestão em relação ao COMDEPAC. Pois, se houve a autorização, com certeza houve uma articulação deliberada da gestão pública contra a preservação do patrimônio histórico local e, nesse caso específico, contra uma das marcas FUNDAMENTAIS da identidade e da história saltense.
Dado todo esse contexto, só nos resta um árduo trabalho. O trabalho voltado para a conscientização da comunidade e das associações civis, para que enquanto sociedade aprendamos a lidar com as responsabilidades e, consequentemente, passemos a cobrar por elas.
De forma concomitante, também é fundamental o trabalho junto aos gestores públicos para que olhem de forma mais coerente para a questão do patrimônio cultural saltense, atuando de forma verdadeira na preservação e salvaguarda da história e da identidade da cidade, abandonando de forma definitiva a equivocada visão de que cultura é apenas afagos políticos e/ou entretenimento”.

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