
Nossa amiga e gentil colaboradora Mércia Falcini nos brinda com outro texto seu refletindo sobre os tempos estranhos que vivemos.
Confira:
“Tempos estranhos esses que vivemos. Tempos em que ensinar se tornou um ato corajoso, quase subversivo.
Foi com essa sensação que li a notícia *de que um professor de história de Ilhabela, no litoral de São Paulo, pediu demissão após ser criticado publicamente por um vereador e pressionado por famílias religiosas por conta de uma aula sobre o tempo.
A aula, destinada a alunos do sexto ano, propunha uma reflexão ampla, que atravessava continentes e culturas, conectando a mitologia africana ao imaginário europeu, com referências gregas.
Uma proposta sensível, que explorava o tempo como símbolo cultural e não apenas como uma sequência de segundos, minutos e horas.
Uma proposta que, além de ampliar os horizontes e esticar os sentidos, ratifica a função do professor: estimular o pensamento crítico sobre o conhecimento acumulado.
Mas foi justamente essa multiplicidade de olhares que incomodou alguns.
O professor, César Augusto Mendes Cruz, doutor em história, levou para a sala de aula a narrativa do titã Cronos e três obras de arte que retratam o tempo como figura masculina idosa: uma pintura de Goya, uma de Rubens e outra de Jacopo del Sellaio.
Ele também apresentou o mito iorubá de Irokô, símbolo de força e ancestralidade, e finalizou a atividade com a canção “Oração ao Tempo”, de Caetano Veloso – uma das mais belas e profundas metáforas sobre a passagem do tempo.
“Quis mostrar que cada cultura pensa o tempo à sua maneira”, disse o professor.
E talvez seja exatamente essa diversidade que hoje incomode tanto. Parece que vivemos um tempo de certezas rígidas, de identidades congeladas, onde o diálogo entre saberes é visto com desconfiança.
Mas o tempo, esse senhor invisível e impiedoso, não se curva a certezas. Ele escorre, escapa, muda de forma. Flui como os rios africanos, sólidos como as montanhas gregas, mas também dança ao som da música de Caetano.
E se o tempo pode ser tantas coisas ao mesmo tempo, por que não podemos ensiná-lo assim – múltiplo, diverso, livre?
Talvez porque isso nos obrigue a encarar o mundo com menos controle, a aceitar que não somos donos da verdade, mas apenas parte de uma narrativa maior que se desenrola muito além de crenças religiosas e ideologias políticas.
Penso que ensinar sobre o tempo, nos tempos em que vivemos, seja justamente uma das tarefas mais necessárias.
Para lembrar que, apesar dos muros que insistem em se erguer, o tempo sempre encontrará uma fresta para passar, para transformar, para resistir.
E resistir tem sido o verbo mais praticado entre os professores destes nossos tempos.
(*) https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/05/14/aula-com-mitologia-gera-demissao-de-professor-em-sp-fui-acuado-e-exposto.htm – acesso em 14 de maio de 2025.
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Veja a canção de Caetano na voz de Maria Gadu