Mércia Falcini, educadora e secretária municipal da Ação Social, nos enviou um artigo seu como colaboração para o blog. Veja que bela reflexão.
“Minha mãe tinha vergonha de ser pobre. Ela dizia isso na intimidade da nossa casa simples e afetuosa; entre as quatros paredes.
Por isso me identifiquei com o discurso de Mia Couto, na abertura do ano letivo do Instituto Superior de Moçambique, quando disse que para viver e conviver na sociedade atual, devemos nos descalçar de sapatos sujos. Em suas palavras, alerta: “Não podemos entrar na modernidade com o atual fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos descalçar. Eu contei sete sapatos sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que escolher, e sete é um número mágico”.
Dos preconceitos citados por Couto, na metáfora dos sapatos sujos, penso que o impacto da Pandemia sobre a nossa economia nos obriga à urgência da reflexão sobre a vergonha de ser pobre. Em seu discurso, ele diz que “a nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre, mas quem cria a pobreza.”
Então, por que carregamos esse sentimento? O que nos foi internalizado, culturalmente, que nos faz sentir vergonha da pobreza?
Por muito tempo a pobreza foi tratada de forma repressiva, atribuindo ao sujeito sua causa. Ainda hoje encontramos referências que atribuem o conceito de miserável às pessoas em vulnerabilidade social. Segundo o dicionário Criativo, miserável (adjetivo de dois gêneros) significa: 1. que é digno de piedade; 2. que vive em extrema pobreza; 3. que merece castigo por sua maldade; infame, vil.
Dessa forma, não fica difícil compreender os motivos que nos fazem sentir culpa e vergonha por uma condição relacionada muito mais à expressão da desigualdade social do que ao esforço individual, como as crenças culturais insistem em propagar.
No Brasil, a pobreza é secular e tem raízes históricas no passado escravista. Mas é, ela mesma, resultado e efeito da ausência de ações políticas voltadas para a diminuição das desigualdades sociais, como o baixo investimento no sistema educacional; a grande disparidade de trabalho e renda entre as pessoas; o preconceito existente na sociedade; entre outras.
Somado a esses motivos, este nosso mundo virtual, sobretudo via redes sociais, faz da pobreza uma condição ainda mais vexatória, cada vez que enaltece, valoriza e dissemina o culto às aparências. Nesse sentido, agradeço à proteção divina por não permitir que minha mãe vivesse nestes tempos. Afinal, “vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia de que o status do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres”, ainda nas palavras de Couto.
É urgente que descalcemos não só “os sapatos sujos da vergonha de ser pobre e o culto das aparências”, mas todos os que impedem a nossa humanidade. O ideal seria que pudéssemos calçar os sapatos da humildade e simplicidade, mas se isso ainda não for possível, que fiquemos todos com os pés no chão.
Porque a verdade, conforme Mia Couto encerra o seu discurso, é uma só: “Antes vale andar descalço do que tropeçar com os sapatos dos outros”.
(Mércia Falcini – veja mais de Mércia em sua rede social)